Um erro não me define (eu acho)
Um vômito de palavras sobre errar, sentir demais e (talvez) aprender a conviver com tudo isso. Quem sabe você se reconheça aqui — ou não.
Ontem eu estava assistindo Grey's Anatomy antes de dormir. Recomecei a série recentemente e, não sei como isso aconteceu, mas já estou na temporada oito. Confesso que é como se eu estivesse assistindo pela primeira vez, porque eu não me lembrava de quase nada — tirando as mortes. Ah, das mortes eu me recordo bem…
Isso, inclusive, faz sentido cientificamente. Calma, eu juro juradinho que hoje eu não vou passar linhas e mais linhas explicando um conceito de neurociências. Só esse rapidinho (é sério, podem me processar se eu não cumprir).
Eu sei que é óbvio que, quando acontece algo mais emocionante na sua vida, você tende a lembrar melhor e mais vividamente — é algo quase que intuitivo.
Minha mãe sempre diz: “Todo mundo sabe onde estava e o que estava fazendo quando o Ayrton Senna morreu.” Acho que, para a nossa geração, talvez o equivalente seja o tenebroso “7 a 1”. Eu falo esses dois números e não tem uma pessoa que não saiba a que eu estou me referindo ou onde assistiu esse jogo — ou melhor, essa tragédia. Prometo que não vou mais falar sobre o evento que não deve ser nomeado, o nosso Voldemort brasileiro.
Agora a parte que eu falei que ia ser rápida.
Essa lembrança tão distinta acontece porque, quando experienciamos emoções intensas, a nossa amígdala — parte do cérebro responsável por processar emoções (não, não tem nada a ver com as amígdalas da garganta que talvez você tenha removido) — é ativada. Esse estímulo modula a atividade do hipocampo, que, para colocar de uma maneira extremamente simplificada, está diretamente envolvido na consolidação de memórias. E o que acontece é que esse processo é amplificado e, por esse motivo, essas são lembranças altamente acessíveis e vívidas.
Pronto, falei que era rápido. Podemos voltar para a minha maratona de Grey's Anatomy agora.
Bom, para contextualizar: uma personagem (o Owen, pra quem assistiu) traiu a esposa (Cristina). Ele está desolado, quando uma colega (Bailey) diz para ele:
"You did a terrible thing. It doesn't mean you're a terrible person."
Essa frase ressoou em mim.
Não, eu não estou passando o pano pra infidelidade. Ou, como se diz hoje em dia, dando uma de Chico Moedas.
Essa fala me impactou porque eu não consigo deixar os meus erros (terrible things) para trás. Coisas que eu fiz faz anos (literalmente, e algumas até décadas) me assombram, e eu me vejo como uma pessoa desprezível por elas e as rumino mais frequentemente do que gostaria. Eu sei que isso não é nada saudável — talvez seja um mecanismo de autodepreciação ou uma forma de evitar sofrer os problemas do presente e focar nos do passado. Até porque não tem nada que eu possa fazer sobre algo que aconteceu meia década atrás, então é a procrastinação perfeita e perpétua para não lidar com o agora.
Eu simplesmente não consigo me perdoar. É como se as ações do meu passado me condenassem a ser uma pessoa terrível para o resto da minha vida.
E o mais engraçado (ou preocupante) dessa história é que esse rancor todo vale só para mim. Eu nunca deixei de desculpar alguém que me magoou (até onde eu me lembro). Eu sempre tento encontrar motivos pelos quais as pessoas erram comigo.
“Ah, mas ele provavelmente estava num dia ruim”
“O jeito que ela foi criada foi diferente do meu, talvez seja só uma diferença de valores” — Spoiler: não era.
E o pior de todos: “Eu devo ter feito alguma coisa para magoar essa pessoa, por isso ela agiu assim comigo” — Mesmo que eu não tenha feito nada.
E essa lógica só vale para os outros. Quando eu falho, eu sou um monstro. Eu só faço mal para as pessoas. Eu não deveria ter amigos, porque eu machuco todo mundo. Eu sou um fracasso — e assim vai… Eu sei que isso parece dramático, mas eu juro que é daí pra pior quando eu entro nesse limbo. E sim, eu faço terapia semanalmente, antes que alguém pergunte ou chame o CAPS.
Vou dar um exemplo para vocês tentarem compreender um pouquinho as tempestades que inundam minha cabeça. Por favor, não se assustem.
Quando eu tinha uns 5 ou 6 anos, eu estava em Porto Seguro viajando com meus pais, minha irmã (a outra não tinha nascido ainda), meus primos e uns amigos da família. A gente estava andando de carro e uma das crianças começou a falar: “Ah, o meu pai tem dois carros, esse e esse.” Não faço ideia de quais eram os modelos. Até hoje, se eu pedir um Uber e alguém falar “É um Sandero”, é a mesma coisa que nada pra mim — precisa me dizer a cor, se é grande ou pequeno, e o número da placa.
Bom, eu virei e falei assim: “Ah, os meus pais têm três carros”, tentando me gabar, eu acho. Não sei muito o que se passava na minha cabeça, mas acredito que era aquela coisa de competitividade infantil.
E aí meu pai, o qual estava no volante, vira e olha pra mim com um olhar que eu nunca vou esquecer — o tal olhar de mil jardas. Ali eu já sabia que eu estava ferrada. Até torci para que demorasse a chegar no destino final.
Dito e feito. Descemos do carro e meu pai me chamou pra “conversar”. Provavelmente foi a primeira (e uma das poucas) broncas tenebrosas que eu tomei. Lembro de ele dizer que eu não era melhor que ninguém por ter mais carros ou menos, que ele não me criou assim, e coisas nessa linha, de uma forma nada amigável, por assim dizer. Também lembro que fiquei dois dias sem poder ir na piscina — o que, pra mim na época, era a mesma coisa que a morte.
Mas sabe o que aconteceu? Eu aprendi. E eu nunca mais fiz aquilo. Atualmente eu agradeço ao meu pai por ter me ensinado, e, graças à minha amígdala, eu lembro muito bem desse dia — mesmo 18 anos depois.
E, às vezes, em momentos muito ruins, eu ainda me sinto mal pelo que eu fiz. Eu fico pensando que, se eu pudesse voltar atrás, eu nunca teria falado aquilo. Essa fala me traz vergonha, quase duas décadas depois. Eu sei, eu só tinha 5 anos, mas vai entender como o meu cérebro funciona.
Eu acho que provavelmente vocês devem estar me achando transtornada. Vocês, no caso, os meus dois leitores mesmo.
Mas pensando agora nesse dia fatídico na Bahia, eu consigo perceber uma coisa: por mais que tenha sido horrível a forma como eu me senti (além do fato de eu não poder brincar na piscina), eu aprendi com isso. Essa mesquinhez nunca se repetiu — talvez tenha acontecido outras poucas vezes, mas eu repreendi na hora.
E não — ter errado naquele dia não faz de mim uma pessoa ruim, como a Bailey disse. Foi uma fala extremamente infeliz, sim, mas ela me fez crescer. Talvez, se eu não tivesse dito aquilo, a lição não teria marcado tanto.
Viu? Às vezes faz bem escrever. Colocar esses pensamentos pra fora é uma forma de digeri-los e entendê-los. Como diz a biografia do meu Substack: “Minha terapeuta mandou eu escrever. Tô obedecendo, vai que cura.”
Esse episódio é um pouco mais fácil de ver dessa forma, mas, quanto mais recente o meu erro, mais complicado fica. E eu sei que eu preciso mudar — eu não quero demorar mais 18 anos para entender que o que eu fiz no ano passado não me condenará para sempre. Mas reconhecer é um primeiro passo, não é? Respondam “sim” em uníssono.
Eu digo que essa é a minha sina. Até por ter estudado neurociências, eu sei racionalmente que esses meus pensamentos não são a realidade e fazem parte do meu transtorno. E eu também sei o que devo fazer. Mas, na prática, não adianta nada ser a maior expert e saber todos os sintomas da depressão, ansiedade ou bipolaridade de trás pra frente — elas te engolem, elas não veem lógica.
Calma, óbvio que com terapia e medicamentos isso pode ser manejado. Existem esperanças, meu povo (não sei a quem estou me referindo aqui), mesmo que elas não sejam soluções rápidas e diretas.
Às vezes eu me sinto aquele doido da praça que fica gritando coisas para qualquer um que estiver passando, mesmo que ninguém dê bola. Mas, se pensarmos bem, Sócrates era considerado um desses loucos por um tempo. Longe de mim me comparar ao professor de Platão, mas o que quero dizer é que, talvez, no meio desses meus vômitos de palavras, alguma coisa possa reverberar com alguém. Ou não também.
Talvez o que eu vou falar agora soe estranho, mas acredito que existe um lado positivo nessa exigência extrema de mim mesma. Eu acho que, por eu não me perdoar, acabo me forçando a pensar no assunto — de todas as perspectivas e ângulos possíveis. E eu sei que isso faz mal, mas acredito que muitas pessoas têm dificuldade em lidar e enfrentar quando falham. Elas preferem ignorar ou encontrar um jeito de tirar a culpa de si mesmas. Eu sei que o meu comportamento é extremo e eu não tô falando que ninguém deveria agir ou pensar como eu — nem desejo isso ao meu pior inimigo. Mas o meu ponto é que, pelo menos, eu reflito sobre o que eu fiz, e isso é importante.
Acho que o meu maior problema é que eu erro muito (na minha cabeça pelo menos essa colocação é verdadeira, por mais que minha terapeuta discorde). Não que eu veja um problema em errar (a não ser o pequeno fato de que eu vou pensar nisso por anos). Como diz o ditado: “Errar é humano”. Eu sou a favor dos erros inclusive. Nada teria graça sem eles, e muitas vezes são eles que levam aos acertos. Mas esse só é o caso quando você aprende a lidar. Inclusive, talvez escrevendo isso eu possa me ajudar a conviver melhor com os meus.
O que estou falando vale para todos os erros, mas, no meu caso específico, é pior quando eu erro com alguma pessoa — quando machuco alguém.
Acho que todo mundo já machucou um amigo, colega, namorado ou irmão. Quando você se importa com a pessoa, tudo fica ainda mais complicado — não que errar com quem não nos importamos seja aceitável, mas a carga emocional é outra.
E para esses momentos eu acredito que o conselho que a minha terapeuta, Cris, me deu (um beijo, Cris) possa ser útil:
“As coisas não acontecem em um vácuo, e você age como se elas acontecessem.”
O que ela quis dizer é que, quando eu falo dos meus erros, eu falo como se minhas ações tivessem sido pontuais, sem contexto nenhum. Vou dar um exemplo chulo para demonstrar o ponto dela:
Vamos supor que entra um assaltante na sua casa. Você está dormindo ao lado do seu companheiro, e os dois acordam e percebem que estão em perigo. As luzes estão apagadas e vocês não enxergam nada, um breu. O seu companheiro derruba algo no chão, e você acha que é o ladrão e o empurra com muita força, fazendo com que ele bata a cabeça.
Eu sei que esse exemplo é bobo, mas é só para eu poder explicar meu ponto de forma clara.
O que eu tenderia a fazer nessa situação é me culpar e pensar: “Nossa, eu sou uma pessoa deplorável, eu empurrei meu namorado no chão e machuquei ele”. Percebem o que eu estou fazendo? Ignorando o fato de que havia um perigo na casa, que eu me assustei, e que, claramente, a minha intenção nunca foi feri-lo. Eu coloquei minha ação no tal do vácuo.
E eu vou contar um segredinho para vocês: as coisas não acontecem em um vácuo (Cris estava correta, como sempre).
Esse pensamento me ajuda muito, mesmo. Porque, quando eu olho pra trás e começo a me aniquilar por conta de algo que eu fiz, eu tento pensar no contexto em que as coisas aconteceram. E, geralmente — quase todas as vezes — ele muda muito a minha perspectiva e me ajuda a me perdoar.
Não estou dizendo que empurrar meu parceiro no chão foi certo — foi, sim, um erro. E, caso alguém invadisse minha casa de novo (como se isso fosse algo recorrente), eu não repetiria a atitude. Mas o ponto de tudo isso é que a circunstância muda tudo.
Então, sim, você pede desculpas ao seu parceiro, mas você não precisa passar os próximos 18 anos pensando o quanto errou e como queria voltar atrás para mudar o que fez (não que alguém minimamente equilibrado faça isso, mas enfim).
E posso te contar outro segredo? Não dá pra mudar o passado — mesmo que você queira muitíssimo.
Por favor, não usem essa lógica para tirar a responsabilidade de vocês e colocar no outro ou no contexto. Não é sobre isso. Você teve culpa, mas isso não significa que você é uma pessoa violenta e agressiva, um demônio que empurra os outros. Entende a diferença?
Vou dar um exemplo que aconteceu comigo.
Tenho uma amizade de infância muito especial. Não moro mais em São Paulo, mas toda vez que visito, a gente se encontra. No ano passado, fui para lá e combinamos de almoçar, mas o plano acabou sendo desmarcado. Depois, ela me mandou mensagem perguntando se eu podia em outro dia.
Só que calhou de que a minha avó foi internada naquela semana, o meu DIU saiu do lugar e tive que fazer uma consulta de emergência. Além disso, o meu voo mudou de data. Um caos total. Com tudo isso acontecendo, eu acabei não respondendo a mensagem dela. E pior ainda: voltei pra Boston no inverno e entrei em um episódio depressivo grave, em que me isolei do mundo (estou melhor agora, não se preocupem, a depressão sazonal acabou e agora só ficou a normal mesmo).
Quando fui ver, fazia mais de um mês que eu não respondia. Me senti extremamente culpada e uma péssima amiga. Mandei uma mensagem explicando e ela não respondeu. Falei que ia pro Brasil novamente, e nada de resposta. Fiquei devastada.
Mas então, um dia, ela me respondeu e explicou que tinha ficado muito chateada. Também me perguntou mais sobre o que tinha acontecido comigo. Contei tudo, e no fim, ficou tudo bem — a gente se resolveu. E ela me disse algo que ficou comigo: “Quando você estiver assim, é só dizer que não quer conversar. Eu vou entender, e estou aqui pra te ajudar”.
Como vocês podem ver, eu errei. Eu deveria ter explicado para ela toda a situação de São Paulo — e depois a de Boston. Eu não agi como uma boa amiga. Se a gente olhasse no vácuo, o que veríamos seria que eu fiquei um mês ignorando minha amiga. Mas o contexto existiu: minha avó estava doente, eu tive que ir ao médico e, depois, entrei em um estado em que não conseguia nem sair de casa — muito menos me comunicar com alguém.
E isso não significa que eu sou uma péssima amiga, ou pessoa. O que eu fiz não foi legal, mas isso não me define. E mais do que isso: não preciso me massacrar pelo resto da vida (ou pelos próximos 18 anos) — e eu aprendi a lidar com situações assim, caso se repitam.
E não é que essa tal de terapia ajuda mesmo?
Enfim, essa tática costuma funcionar pra mim — quando eu lembro de colocar em prática, claro. Quem sabe ela também ajude alguém por aí (caso isso seja um problema pra você). E um spoiler final:
Você vai fazer coisas terríveis. Mas isso não significa que você é uma pessoa terrível. E nada — nadica de nada — acontece em um vácuo.
Meu objetivo é ficar tipo esse quadro